Filosofia, fé e felicidade II
Santo Agostinho dispõe-se a percorrer o longo e árduo caminho que o separa desde o sentimento do abalo interior até à meta desejada, isto é, a tranquilidade do seu ser em Deus. Para tanto, no caminhar do percurso, há que superar e vencer o obstáculo que representa o corpo, sempre atreito a muitos vícios. Como superar tais enfermidades?
É através do método da interioridade, a fim de se conhecer a si mesmo, recolhendo-se das coisas sensíveis, que o homem consegue a libertação interior, como nos ensina o pensador em De beata uita.
A metodologia de Agostinho comporta um papel moral muito importante, na medida em que desnuda os vícios de que o homem é objecto e prepara-o para a renúncia das coisas sensíveis (as que perturbam o espírito) e para o desapego a uma vida fácil em sentido mundano. Agostinho dispõe-se, por conseguinte, a levar por diante a sua tarefa, mesmo que isso implique sacrifícios, visto que quer alcançar a meta que entende ser a mais desejada e verdadeira, no sentido da tranquilidade espiritual.
Se a felicidade consistisse apenas em satisfazer as tendências egoístas do corpo, o homem não sentiria uma certa insatisfação dentro de si, como aconteceu com Agostinho. Pois o gozo ou o fruir do sensível não é duradoiro, embora possa ser imediato. O método de Agostinho permite ao homem superar estes obstáculos, na medida em que desenvolve a interioridade espiritual e o faz penetrar no mais profundo do valor ético do bem. Trata-se, pois, de um método imanente, referencial da reflexão que parte da realidade sentida pelo homem e que, progressivamente, o induz a superar-se sem cessar até encontrar, em si, a transcendência.
A busca da vida feliz, através da experiência dos bens finitos, que Agostinho concluiu serem insuficientes, porque são transitórios, deu lugar a um processo de ascensão a Deus. Este processo que Agostinho inicia com a reflexão filosófica não é, contudo, suficiente para alcançar os seus propósitos. O elemento fé é também indispensável em todo este processo. Serão a reflexão e a fé que ajudarão o homem a encontrar e a percorrer os caminhos para uma vida de verdade, de libertação e de virtude, sendo que esta é a actividade essencial da alma.
Sociologicamente, a carência traduz-se em desejo, devido a que o homem carece de ser. Consequentemente, carece também da luz do conhecimento que permite discernir o que é bom e o que é mau. Por isso, o desejo por carência de ser não se satisfaz apenas com o possuir algo, como diz Santa Mónica, porque nem sempre o que se quer e se consegue nos torna felizes. Querer o mal e obtê-lo não pode fazer feliz o sujeito deste desejo. Quer isto dizer que nem tudo o que se tem ou se quer e se obtém faz com que sejamos felizes, por querer o que não convém será desejar a própria infelicidade. Por conseguinte, uma vontade má é o maior impedimento à felicidade, porque se se é infeliz por não se ter o que se quer, não é menos verdade que ter tudo o que se quer pode também fazer o homem infeliz, basta que se obtenha algo susceptível de produzir o mal. Pode, portanto, dizer-se que todo aquele que quer e obtém o mal não sabe querer, visto que deseja a perversidade que, como já foi dito, contribui para a inexistência do ser. Consequentemente, se quem é infeliz é aquele que não sabe querer, então é porque a sua alma está cheia de vícios.
Nesta linha de pensamento, dir-se-á que tudo o que contribui para a realização do ser faz o homem feliz. Por conseguinte, para efectuar esta realização, o homem deve poder desejar algo que não esteja sujeito às incertezas da fortuna nem às circunstâncias do acaso. Neste sentido, Agostinho acredita que só o eterno pode fazer feliz o homem, pois, como se sabe, o que é transitório, em todos os sentidos, não está sempre ao nosso alcance e, se eventualmente, alguma vez está, não se mantém no tempo que desejamos. Dirá, então, Agostinho que não será por causa da fortuna das coisas perecíveis, ainda que momentaneamente muito agradáveis, nem por se viver em abundância que o homem consegue uma vivência de felicidade, mas sim pela moderação da sua alma.
Outro aspecto da ética agostiniana é a confluência da razão e da fé. O sentido da razão parece ser muito profundo, significa a actividade da alma e um movimento de perfeição interior, que aliada à fé funda a ética.
Agostinho considera que as faculdades razão, vontade e virtude são de ordem teológica: Deus as deu ao homem. Mas o homem é livre de reconhecer a Deus e, consequentemente, de aceitar a sua ajuda e os seus dons. Mas isto não quer dizer que o homem que não reconheça a Deus não possa praticar a virtude, pode. Simplesmente um tal homem não pode ser predicado de sábio, não só porque a sabedoria é o conhecimento das coisas divinas e humanas, mas também porque a sabedoria é um donum Dei. Portanto, a virtude daquele que não reconhece a Deus não está plenamente justificada nem valorizada. É por isso que santo Agostinho pretende proteger o espírito e a sensibilidade humana das vicissitudes da existência. Como? Apelando para a prática sábia da virtude, porque é graças à autonomia da virtude que o sábio encontra a liberdade e é feliz em todas as circunstâncias. António Pinela, Reflexões.